Transgeneridades e Não Binariedade

Transgeneridades e Não Binariedade

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Antes mesmo de nascermos certas coisas na nossa vida parecem já determinadas por outras pessoas que a nós estarão conectadas ao longo de nossa jornada, sem que tenhamos a possibilidade de escolha. A família, o lugar onde nascemos: cidade, estado, país, a casa, assim como, o nome que nos será dado, e algo muito importante: o gênero imposto socialmente ao nascimento, irá nos constituir no mundo, dentro de uma lógica de organização binária dos gêneros. No texto abaixo, vamos debates sobre a não binariedade dos corpos.

Gênero é Fazer

Diferentemente do que muitas (ou a maioria) pessoas possam pensar, ninguém nasce pertencente a gênero algum, pois gênero não é ser e sim fazer , como nos diz a filósofa estadunidense Judith Butler (1990). Esse escrito é um exercício para pensar gênero para além do que já estamos acostumades: masculino e feminino. Daqui para frente convido a todes para fazermos um breve mergulho num mar de muitas possibilidades, para além do binário.

Para a professora Tânia Navarro Swain do Departamento de História da UNB (Universidade de Brasília) a interpretação binária do mundo não está somente ligada a ideia de gênero, ou seja, masculino e feminino, mas igualmente na visão dualista do que compõe a inteligibilidade da vida (SWAIN, 2001). Diante disso, podemos compreender que a sociedade ainda se encontra mergulhada em binarismos – as classificações, as nomeações, as representações são um exemplo disso: o bem e o mal, o claro e o escuro, o puro e o impuro, o verdadeiro e o falso, o belo e o feio, etc.

A vida civil de cada pessoa é construída de maneira dicotômica, há muitos exemplos que ilustram a reiteração da norma binária – a certidão de nascimento que assinala o “sexo” (designação do gênero ao nascimento) da criança como masculino ou feminino, além de outros documentos civis; os formulários que contém dois únicos campos: masculino e feminino. Os nomes são quase sempre escolhidos em função do gênero designado. Antes mesmo que a criança nasça o mundo estará dividido em duas possibilidades de gênero e uma delas deverá ser desempenhada ao longo da vida, como uma norma vigente que constitui a sociedade como um todo.

Identidades não binárias

As identidades não binárias têm desafiado a estrutura binária que há milênios organiza a sociedade dessa forma. Pessoas trans não bináries movem a todo o momento as fronteiras do gênero, questionando as noções de masculino e feminino. Em uma sociedade hierarquizada através das categorias de gênero e sexualidade, o gênero é um elemento que constitui as relações sociais baseado nas diferenças que se produzem, além de ser uma forma de significar as relações de poder, sendo o masculino o gênero dominante nas diversas esferas sociais (SCOTT, 1995).

Desta maneira, podemos compreender que não há corpo que exista naturalmente, pois todos os corpos existem socialmente a partir do conceito de gênero, das categorias de feminino e masculino. Pessoas trans não binárias, podem fluir entre o gênero masculino e o gênero feminino, percebendo-se como “homem”, como “mulher”, mas não totalmente e não da forma como a binariedade solicita, de forma rígida, sem possibilidade de fluir ou possibilitar outras significações para gênero. Dentro do espectro da não binariedade há um trânsito constante entre o masculino e o feminino e também um deslocamento para além dessa dicotomia masculino/feminino e homem/mulher.

Carlota Miranda Travesti Não Binárie
Carlota Miranda para AFIRME. (2018, POA/RS) | Foto: Felipe Paiz

Expressão de Gênero

Até agora falamos sobre identidade de gênero, mas é preciso ressaltar, ainda que de maneira breve, que a não binariedade também se constitui enquanto expressão de gênero, ou seja, a maneira como cada pessoa se expressa através de vestimentas, acessórios, maquiagem, etc. A expressão de gênero combina diversos elementos que compõe a expressão corporal de cada pessoa, esses elementos também são chamados de tecnologias de gênero, na perspectiva binária a construção do gênero masculino ou feminino dependerá ou não da incorporação de diversos elementos, ex: cores (azul para meninos, rosa para meninos), cabelos longos para meninas e curtos para os meninos, posturas e gestos típicos de homens ou mulheres, uma infinidade de elementos que tornaria/”fabricaria” alguém como ‘homem’ ou como ‘mulher’. As identidades não binárias podem se expressar de inúmeras formas, uma pessoa trans não binária pode ter uma expressão de gênero feminina, masculina, neutra, fluida, entre outras. Dessa forma, a não binariedade pode ser uma identidade de gênero e também uma expressão de gênero.

Diante do que até agora discutimos, de que maneira (s) podemos viver para além das noções de gênero, marcada pelas noções de masculino e feminino? Sendo gênero a maneira primária de diferenciar as categorias homem e mulher, inscrever e nomear os corpos, além de todo o momento invocar e convocar a todes a assumirem os papéis sociais e sexuais de acordo com a ideia do que é ser masculino ou feminino, limitando a noção de indivídue a uma binariedade que materializa e nomeia os corpos?

Que mecanismos e estratégias podemos utilizar para construir e possibilitar outras formas de vivenciar a identidade e expressão de gênero, leva em conta as subjetividades de cada pessoa?

As naturalizações e essencializações tão enfaticamente incorporadas ao gênero ao longo da história se mostram possivelmente capazes de serem rompidas e ressignificadas, pois as categorias binárias do gênero são ao mesmo tempo vazias e transbordantes. Há corpos que não se encaixam nessas categorias, que não se enquadram, dessa maneira, divergem da noção de “verdadeiro” sexo e o “verdadeiro” gênero fundamentados na dicotomia homem/mulher e masculino/feminino. Judith Butler (2003: 24-25) afirma:

A hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra explicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito. Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a consequência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino.

Ainda vivemos em um mundo mergulhado na ideia de um padrão preexistente de homem e mulher. Reduzidas parecem as possibilidades de expressar a identidade e a sexualidade para além das maneiras convencionais baseadas na heterossexualidade, na cisgeneridade e na binariedade de gênero. A não binariedade de gênero tem se constituído na desconstrução das velhas certezas e a construção de novos lugares, tem sido a expressão de novas identidades, de outras representações e significações, tem sido a reflexão constante acerca das identidades culturais no mundo contemporâneo, tecnológico, digital e veloz.

Eu Carlota Miranda, falo de um “não lugar”, pois ainda não é legítimo socialmente, falo do lugar da travestilidade e da não binariedade, um espaço amplo de construção de outras e novas possibilidades de vivenciar o gênero para além da ideia de feminino ou masculino. A travestilidade, ao meu ver e a partir da minha vivência estão dentro do espectro da não binariedade, pois eu assumir esse lugar de travesti, e não de “mulher”, me permitir construir
outras formas e possibilidades de ser feminina, ser feminina é diferente de ser mulher, é um lugar amplo.

A não binariedade de gênero tem se constituído como um movimento contínuo das fronteiras do gênero, como o questionamento permanente das noções dicotômicas do que é ser homem ou mulher. Pessoas trans não bináries ao redor do mundo têm se desafiado a borrar as fronteiras do gênero, buscado ampliar esse lugar. Assim, tem sido minha vida, uma uma luta diária para viver enquanto travesti, uma identidade política tão marginalizada e violentada e também não binárie, uma identidade tão desacreditada e deslegitimada.

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Pesquisa e texto por:
Carlota Miranda
Bacharela em Ciências Sociais pela PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).
Atualmente trabalha como educadora comunitária no Centro de Pesquisas Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Travesti não binárie.

 

Referências bibliográficas
BUTLER , Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes.(org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Ed.Autêntica, 2000 p. 110-125.

BUTLER , Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2003. 236 p.

FILHO , Amílcar Torrão. Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam. Cadernos Pagu (24), janeiro-junho de 2005, pp. 127-152.LOURO , Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação – Uma perspectiva
pós-estruturalista. Petrópolis, RJ. Vozes, 1997.

SCOTT , Joan Wallach. Gênero uma categoria útil de análise histórica . Educação & Realidade. Porto Alegre, vol.20, nº 2, jul./.dez. 1995, pp. 71-99.

SWAIN , Tânia Navarro. Para além do binário: Os Queer e o Heterogêneo. Niterói, v.2, n.1, pp.87-98, 2. Sem. 2001.

https://http://michaelis.uol.com.br/busca?id=L81W

https://emmathomas.com.br/2015/11/o-estranho-23festival-mix-brasil-francisco-hurtz

https://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/post/linn-da-quebrada-versa-sobre-sexo-e-feminilidade-trans-no-album-pajuba.html

https://www.kickante.com.br/campanhas/linn-da-quebrada-bixa-pode-fazer-um-pedido-0

 

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